Nas últimas semanas, um assunto passou a ocupar cada vez mais espaço no noticiário: o chamado tratamento precoce para a covid-19. Alvo da politização, o uso de medicamentos, como ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina para cuidar de pacientes com o novo coronavírus, ganhou adeptos e detratores na mesma proporção.
A abordagem do tema pela imprensa não tem permitido um grande aprofundamento, até porque quase sempre fica ao redor da contraposição de opiniões que, pelo menos por enquanto, não parecem se direcionar para um consenso. Pelo contrário, ânimos acirrados – de um lado e de outro – tornam o clima propício ao conflito desnecessário.
Antes de tudo, é importante ressaltar minha opinião, inclusive como membro do Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem sido citado nas discussões sobre o assunto. É preciso esclarecer que o Plenário desta autarquia, em maio do ano passado, aprovou, por meio do seu Parecer 4/2020, o uso off label de medicamentos para o tratamento da covid-19.
O que esse texto preconiza é a autonomia médica, a qual tem limites, amparados nos princípios bioéticos da beneficência e não maleficência. O Conselho não apoia ou proíbe o chamado tratamento precoce contra a covid-19. Cabe ao médico a decisão de indicar ou não o tratamento que julgar adequado, em comum acordo com o paciente, tendo o princípio da beneficência ao paciente.
Por sua vez, compete ao médico, ainda, esclarecer que não existe evidência de benefícios comprovados no tratamento farmacológico dessa doença. Mesmo assim, se o paciente o solicitar, a prescrição deve ocorrer com a concordância do médico e paciente mediante assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido.
Isso pode ser resumido da seguinte forma: o médico não pode obrigar ninguém a ingerir uma substância. Se ele entende que o seu uso pode ajudar, deve explicar que ainda não existem evidências comprovadas de benefícios e detalhar todos os possíveis riscos implicados. Na sequência, se há concordância, ele e seu paciente assinam um termo de consentimento livre e esclarecido.
O mesmo entendimento vale para o paciente, isto é, ele não pode obrigar um médico a prescrever algo que este profissional considere inadequado. Vale ressaltar que essa autonomia (do médico e do paciente) é garantida constitucionalmente. Trata-se de um direito inviolável, que não pode ser desrespeitado no caso de doença sem tratamento farmacológico reconhecido, como é o caso da covid-19, como prevê a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Diante de uma pandemia sem precedentes, que já contaminou e matou milhões de pessoas em todo o mundo, os médicos, os profissionais da saúde, os gestores (públicos e privados) e os pacientes, bem como todas as outras autoridades que têm se manifestado sobre o tema, precisam entender que essa autonomia deve ser exercida em sua plenitude, sem cerceamento.
Como já dissemos, não há comprovações científicas a favor ou contra essas drogas. Diante da incerteza, há uma decisão que deve ser tomada de forma autônoma e consciente, sendo que essa escolha precisa ser igualmente respeitada.
Pessoas, instituições ou organizações que agem de forma diferente, tentando limitar o direito de médicos e de pacientes – de uma forma ou de outra, é ato que desrespeita aqueles que estão na linha de frente e a todos que buscam neles orientação para tratar de seus males.
José Hiran da Silva Gallo
Diretor tesoureiro do Conselho Federal de Medicina (CFM)
Conselheiro do Cremero
Doutor e pós-doutor em Bioética