Países, estados ou municípios devem distribuir certificados de vacinação para liberar acesso de cidadãos a eventos ou locais de comércio? Este tema, que envolve o chamado passaporte da vacinação, está atualmente no centro de um debate que vai além de questões técnicas e clínicas ao envolver elementos éticos e bioéticos.
Sabe-se que essa prática vem sendo adotada em diferentes países. Inclusive, já houve situação semelhante, quando os países passaram a limitar o acesso em seus territórios a viajantes que possuíam a certificação internacional de vacinação contra a febre amarela. No entanto, entende-se que no caso da covid-19 a adoção de estratégia semelhante não é adequada.
Para início de conversa, é preciso entender a motivação da proposta. Os defensores desse documento afirmam que o passaporte da vacina é uma medida que estimulará a população a obter a imunização contra a covid-19. Contudo, contra esse argumento nobre, há inúmeros outros que ressaltam os limites dessa tese de implementação de um passaporte da vacina contra a covid no Brasil. A seguir, vamos enumerar alguns deles.
Em primeiro lugar, deve ser reconhecido que a eficácia das vacinas disponíveis, até o momento, não é suficiente para garantir que o vacinado não se infectará com o coronavírus uma outra vez e nem que não transmitirá o vírus. Também não se sabe ainda por quanto tempo o vacinado estará protegido e nem se precisará de reforço da dose em um período de tempo após completar o esquema vacinal inicial.
Diante disso, os passaportes seriam efêmeros e exigiriam atualização constantemente, numa logística que absorveria um volume importante de recursos e de esforços de técnicos que devem estar envolvidos prioritariamente na assistência à população.
Outro efeito deletério de uma proposta desse porte é seu poder de influenciar negativamente a adesão às medidas de prevenção à covid-19. Como dissemos, ainda há desconhecimento científico sobre diferentes aspectos relacionados à covid-19. Assim, ao adotar o passaporte da vacina, pode-se comprometer estratégias de enfrentamento à doença.
Por exemplo, abrigados sob o selo de uma suposta imunidade, milhões de indivíduos poderiam passar a relaxar no que se refere à prevenção ao coronavírus. Isso porque teriam a falsa impressão de que medidas não farmacológicas (como utilizar álcool para desinfecção das mãos, uso de máscara de proteção e distanciamento social) não seriam mais necessárias.
Podemos acrescentar também neste contexto envolvendo o passaporte da vacina um outro elemento preocupante. Trata-se do impacto legal e ético nas relações humanas a partir da adoção de uma ferramenta desse tipo.
Esse documento poderia ser usado como senha para restringir acesso a locais, o que pode ser considerado uma forma de discriminação e de ofensa aos direitos humanos. Com isso, o passaporte ou passe da vacinação funcionaria como um instrumento de divisão da sociedade em grupos.
Sua aplicação poderia ainda representar barreiras de acesso ao emprego, à educação e a serviços às pessoas que não tiveram como se vacinar por falta de vacina. Num país como o Brasil, a adoção desse passaporte reforçaria a iniquidade e acentuaria ainda mais as desigualdades sociais e econômicas.
Frente a tantas dúvidas e riscos, a principal preocupação dos países neste momento, inclusive no Brasil, deve ser vacinar em massa a população e estimular o respeito às medidas de controle do vírus. Isso até que a ciência ofereça as respostas definitivas para o controle da pandemia.
Até lá, as autoridades devem estimular a aplicação das regras de prevenção de forma igualitária, disponibilizando condições para seu cumprimento. No caso da covid-19, não há remédio milagroso, nem vacina eficiente por completo já conhecida. Por isso, devem ser mantidos os cuidados sanitários, a vacinação e a busca de novos medicamentos que, somados, vão levar à vitória sobre o vírus.
José Hiran da Silva Gallo
Diretor-Tesoureiro do Conselho Federal de Medicina (CFM)
Doutor e pós-doutor em Bioética