A todo momento, em especial em tempos conturbados, como os atuais, há necessidade de reflexão sobre como nos posicionamos diante do mundo enquanto indivíduos e integrantes de uma sociedade suscetível a influências que muitas vezes carecem de lastro. Somos testemunhas de diferentes percepções que se entrecruzam determinando rumos ao coletivo, o que permite vislumbrar grupos e interesses (das mais variadas cores e vertentes) se digladiando em busca de uma sonhada hegemonia no campo das ideias. No meio desse campo de batalha, estamos nós.

É neste cenário que assistimos, hoje, a um grande debate em torno da autonomia médica. De um lado, há aqueles que questionam a possibilidade do profissional da medicina orientar sua conduta clínica a partir de suas convicções técnicas e éticas acerca do impacto positivo de suas decisões sobre a saúde do paciente. No campo oposto, estão os defensores de que estes homens e mulheres mantenham na integralidade o direito de exercer o seu mister de forma plena.

Antes de avançarmos em nossa análise, é preciso entender um ponto: a medicina, como a conhecemos, só é possível de ser exercida com a preservação de dois princípios. O primeiro é o do sigilo, que garante que na relação entre médico e paciente todas as informações serão utilizadas apenas para o enfrentamento de uma doença. De forma complementar, surge a autonomia que, segundo as regras de conduta da medicina, depende de que assistente e assistido estejam plenamente informados, esclarecidos e conscientes de todas as implicações relacionadas às suas escolhas.

Dito isso, vamos nos deter sobre a autonomia, um princípio bioético a respeito do qual todos têm uma opinião formada, mas sem, não raras as vezes, compreender verdadeiramente seu significado e relevância no campo da prática médica. Para início de conversa, o Código de Ética Médica estabelece em seus princípios fundamentais que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

A partir desse entendimento, compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em prol do paciente e da sociedade. Para tanto, define o Código, o médico exercerá sua profissão com autonomia, “não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência”.

O normativo determina ainda a impossibilidade de o médico, “em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto”, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho. Ou seja, disposições de qualquer natureza não podem limitar as escolhas realizadas pelos médicos, pelas quais assume responsabilidade.

Esse arrazoado delimita com exatidão o sentido da autonomia na prática médica, retirando argumentos do que apregoam que essa prática ocorre à revelia. Pelo contrário, as balizas existem, estão bem estabelecidas e são difundidas junto aos profissionais e pacientes, que, no processo assistencial, são corresponsáveis pelos direcionamentos adotados. Assim, o escopo enunciado acima nos permite entender a essência da autonomia nas decisões clínicas, visando a eficácia das ações e a segurança dos pacientes.

Ora, a autonomia não significa liberdade irrestrita. É evidente que este princípio encontra limites na ética e na legislação, devendo o médico se curvar a ambos sob pena de se colocar em terreno questionável, ficando, portanto, vulnerável a penalidades, caso os desrespeite. Ressalte-se ainda que a autonomia não deve ser confundida com individualismo, mas vista como expressão máxima de respeito ao outro e ao coletivo.

Por tudo isso, a autonomia não deve ser vista como um cheque em branco dado ao médico na sua relação com o paciente. Sua prática está condicionada, fundamentalmente, ao benefício que trará, sem incorrer em exposição do indivíduo a qualquer malefício. Reitere-se, mais uma vez, que em seu exercício todas as escolhas podem ser feitas apenas e unicamente no espaço permitido pela lei.

De forma complementar, é impossível desconsiderar a vontade do paciente neste processo, pois, desde o surgimento da bioética, ela passou a ser tão importante na definição da conduta terapêutica quanto a do profissional que a conduz. Desta feita, o respeito à autonomia está ancorado na dignidade da natureza humana, rompendo-se a visão de uma relação médico-paciente paternalista e absolutista, onde só uma das vontades prevalece.

Assim, a autonomia, limitada pela ética e pela lei, é a garantia de que a pessoa pode tomar decisões relacionadas a sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica e suas relações sociais. Isso pressupõe que lhe seja oferecida liberdade de escolha, a partir da concordância com o que lhe foi esclarecido. Esse contexto exige que a boa prática médica atual seja defendida à luz da obediência aos conceitos hipocráticos da beneficência, não-maleficência, respeito à vida, a confidencialidade e à privacidade, acrescidos do respeito à autonomia do profissional e do paciente.

Independentemente do motivo que tem suscitado tantos ataques e críticas à autonomia do médico e do paciente, nos parece impossível ignorar a sua necessidade nos dias atuais. Será que vamos retornar ao tempo em que os direitos individuais não contavam e o paciente tinha sua participação limitada a quase zero no processo assistencial? É urgente refletir sobre esse tema e atuar em defesa dos avanços incorporados à prática médica no Brasil pelo Código de Ética Médica, no ano de 2010, dentre a implementação de uma autonomia na medicina que nunca é arbitrária, mas consensuada e fruto do mais amplo esclarecimento.

 

José Hiran da Silva Gallo
Diretor-tesoureiro do CFM
Doutor e pós-doutor em bioética

 

 

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